Quando passamos pela porta automática de vidro, o frio na barriga piorou cem vezes, minhas mãos voltaram a tremer e eu abracei meu corpo. O aeroporto estava bem movimentado, por conta de ser temporada de férias escolares.
Na frente, estavam seu Danilo, empurrando o carrinho de bagagens, e dona Olívia, segurando sua bolsa e nossas passagens. Logo atrás, estavam Gabriel e sua atual namorada, Juliana. E, finalmente, atrás deles, estava Rafa, que agora tinha parado para me olhar.
Assim que entrei no aeroporto, fiquei deslumbrado. Era realmente um lugar encantador. Haviam centenas de pessoas ali, correndo de lá para cá, carregando malas, travesseiros e celulares. A infraestrutura do aeroporto de Guarulhos era incrível. Eu estava admirado.
Assim que passei pela porta de vidro, soltei minha mala e fiquei admirando a paisagem tecnológica e, ao mesmo tempo, artística do local. E, se eu tinha parado no tempo, o Rafa também tinha… ele tinha parado para me olhar sorrindo.
― O que foi? ― Ele perguntou.
― Nada… é só… esse lugar…
― Maneiro, né?
― Uhum… olha pra isso… ― eu disse deslumbrado.
― Vem logo! Quero te mostrar uma coisa! ― Ele me chamou.
Peguei novamente na alça da minha mala e o segui. Para todos os lados haviam placas, painéis coloridos, pessoas diferentes e funcionários fazendo aquele ecossistema funcionar. Volta e meia, podia-se ouvir os avisos sobre os próximos voos.
― Vem logo! Corre aqui! ― Ele disse e saiu correndo.
― Não posso correr! Tô com a minha mala! ― Eu disse, mas ele não me ouviu.
Conforme eu caminhava, eu observava cada um de seus passos. Ele foi até uma janela de vidro gigantesca que ocupava a parede inteira. Era a janela que dava para a pista de decolagem. Haviam várias pessoas ali com as caras grudadas naquele aquário de aviões, provavelmente observando os amigos e os parentes partirem.
Finalmente o alcancei e permaneci ao seu lado, assistindo, abismado, à dimensão de tudo aquilo. Os aviões eram gigantescos. O barulho das turbinas, assustador. E a quantidade de informações que se propagava pelo ambiente era imensurável. Quando algumas pessoas começaram a apontar para o céu, percebi que um avião estava se preparando para pousar.
Um avião estava vindo a todo vapor em direção à pista. Conforme ele ia se aproximando, meu nervosismo crescia exponencialmente. O avião estava cada vez mais perto, mas não diminuía sua velocidade.
― Rafa…? ― Eu o chamei preocupado.
E ele estava cada vez mais perto e nada… nada de diminuir a velocidade…
― Rafa…? ― Eu o chamei novamente.
Segurei na mão do Gatinho e senti o ar fugir de meus pulmões. Assim que o avião encostou suas rodas no chão, um barulho fortíssimo ecoou pelo aeroporto. Nessa hora, não sei porquê, mas acabei apertando a mão do Gatinho com força… como se fosse minha responsabilidade parar aquele avião usando o poder do meu pensamento.
E ele, ainda que estivesse no chão, continuava muito rápido. E, a cada metro que ele percorria, eu apertava ainda mais a mão do Gatinho. O barulho dos freios era alto e violento… mas também… como seria possível parar uma fera daquelas sem perturbar a paz do restante do ambiente? Era como um ouvir um grande monstro rugir enquanto era impedido de continuar seu caminho.
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Só parei de apertar a mão do Rafa quando aquela fera mastodôntica parou. Quando isso aconteceu, fui tomado por uma sensação imensa de alívio… que também durou pouco… a preocupação e o frio na barriga voltaram a me dominar quase que instantaneamente.
― Não vou subir nesse troço nem se me pagarem… ― eu disse para o Rafa.
― Nah… você vai ficar bem… o pior que pode acontecer é o avião cair e você morrer…
― Rá… rá…
― Mas relaxa, se isso acontecer, você não vai morrer com a queda… você vai ser queimado antes…
― É o que!? ― Eu exclamei para ele.
― Mas relaxa… se isso acontecer, enquanto você estiver caindo, sua pressão vai cair tanto, que você vai desmaiar! Daí não vai sentir nada! E puft! Vai acordar do outro lado comigo!
― Puft… ― eu disse baixinho para mim mesmo.
Ficamos olhamos os aviões por mais uns cinco minutos… até sermos achados pelo Gabriel.
― Aí estão vocês, caralho! Andem logo, tô morrendo de fome! E o papai disse que só vamos comer depois que fizermos o check-in!
Eu, o Rafa e o Gabriel voltamos para seus pais, que estavam na fila do check-in, junto com a Juliana.
Seu Danilo tinha seus quarenta e cinco anos e era um homem de aparência tranquila. Ele tinha um bom porte físico e sempre andava bem vestido. Agora ele estava usando um de seus blazers de grife bege. No pulso, sempre usava um relógio dourado que ele dizia ter comprado na Suíça. Ele tinha cabelos louros apagados e sem brilho, por conta da idade, mas continuavam claros e um tanto quanto esbranquiçados e grisalhos. Diferentemente do restante da família, ele possuía olhos escuros, um tom de preto adulto-sem-graça. Ele era elegante. Tinha que ser, por causa do trabalho. Ele trabalhava numa firma de consultoria empresarial… não me pergunte o que isso significa… só sei que ele era podre de rico…
Seu Danilo era um homem bonito, elegante e charmoso… mas não foi só dele que o Rafael herdou sua beleza divina. Dona Olívia também era muito bonita. Ela tinha seus trinta e nove anos, mas aparentava ser mais nova. Sempre bem maquiada e com um excelente gosto para moda, ela exalava um ar jovial. Ela não era uma daquelas mulheres que se contentava com qualquer pano colorido cobrindo o corpo… ela sempre usava roupas que combinavam, não só entrei si, mas como também com seu rosto, com seu cabelo e, principalmente, com as suas unhas, sempre bem-feitas, por sinal.
Ela tinha longos cabelos loiros, que eram lisos e finos, mas que se encaracolavam nas pontas. Diferente de seu Danilo, o louro de seu cabelo era mais vívido. Era mais amarelado. Tinha lá minhas dúvidas se ela não o pintasse… pois era um loiro diferente do loiro dos filhos.
E, por falar neles… posso dizer que hoje os dois estavam… irresistíveis.
O Rafa estava todo de preto. Ele estava usando uma calça jeans preta bem apertadinha que deixava seu bumbum incrivelmente atraente. Ele usava camiseta preta sem estampa e um tênis de sola reta, também preto, porém com a sola branca. Esse visual escuro contrastava com a sua pele branquinha. Seus cabelos louros claros já cobriam quase toda sua testa. Eles estavam ficando cada vez mais grandinhos… e, com isso, ele ficava cada vez mais lindo e voltava a ser o meu Rafinha de antes…
Gabriel também estava usando uma franjinha loira. Mesmo ele sendo mais velho que o Rafa, sua franja continuava tão natural quanto à do irmão. Os dois tinham cabelinhos extremamente finos e macios… como se fossem cabelinhos de um bebê.
Gabriel, embora estivesse um calor de matar, estava usando uma jaqueta de couro preta. Mas não era culpa dele. Se o Rafa não fosse tão teimoso, também estaria vestindo um
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casaco de frio. Dona Olívia, quando queria, conseguia ser muito insistente. Mas, estando calor ou não, sua jaqueta de couro caía perfeitamente bem e combinava com sua calça jeans azul e com seus óculos escuros de aviador.
Juliana, por sua vez, tinha dezesseis anos, assim como Gabriel, e também era loira e rica. Todo mundo nessa família era loiro e rico! Menos eu, porra! Jú, como Gabriel a chamava, estava vestindo calças jeans, um tênis e uma blusinha de tecido leve, fino e cor-de-rosa. Ela estava bem maquiada e com os cabelos e as unhas bem-feitas. Segurava uma bolsinha feminina e, no geral, ela parecia ser uma menina bem meiga e educadinha.
Estávamos os seis na fila do check-in. Quando chegou nossa vez, confirmamos nosso voo, despachamos nossas bagagens e fomos comer alguma coisa. Chegamos na praça de alimentação do aeroporto e eu fiquei completamente perdido. Tinham muitas opções diferentes de comidas para escolher. Senti minha barriga roncar de fome. Eram duas da tarde e ainda não tínhamos comido nada. Então, separados por casaizinhos, nós seis fomos procurar alguma coisa para comer. Fiquei com o Rafa.
― E aí, Lu… o que vai querer comer? ― Ele perguntou enquanto se encostava em mim.
― Ai… não sei… não tô com fome… ― eu menti timidamente.
― Hum… eu estou com vontade de comer pão de queijo… você quer?
― Não, não… acho que estou de boa…
― O que? Não é possível! Você não comeu nada! Espera aqui que eu vou buscar um pão de queijo pra você…
Quando ele virou as costas, eu o segurei pelo braço.
― Espera! ― Eu o chamei.
― O que foi?
― Não… não precisa… eu não quero comer nada…
― Mas você não está com fome?
― Pior que não… ― menti novamente.
― Tá… mas, mesmo assim, eu vou buscar um lanche pra você… não precisava comer agora… você come quando ficar com fome… pode ser?
Ele disse virando as costas.
― Espera! ― Eu o chamei.
― O que foi?
― É que… e se… ― eu disse e fiquei quieto.
― E se o que?
― E se eu vomitar, Rafa?
― Vomitar por que? Por causa do avião?
― É… ― eu disse passando minha mão pelo braço.
― Você ainda tá com medo?
Eu não respondi, apenas fiz que sim com a cabeça.
― Olha, você não vai vomitar, tá bom? É a mesma sensação que andar de carro! Ou de ônibus! Entendeu?
― E se…
― Você não vai passar mal! Só se você não comer… aí sim você vai passar mal…
― Não sei não…
― Lucas! Confia em mim… não é lá essas coisas!
― Tá… tá bom… eu confio…
― Tá… mas então… o que quer comer?
Olhei em volta e vi algo que me apeteceu.
― Podemos ir no Bob’s? ― Eu perguntei.
― ―
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― O que? Não! ― Ele recusou. ― Não vamos comer porcarias!
― Mas eu gosto! Olha o tamanho daquele cheddar! ― Eu disse apontando para a placa de propaganda.
― Se você comer aquilo, aí sim que você vai saber o que é vomitar de verdade! Vem logo! Você precisa experimentar o pão de queijo daqui!
― Aff… tá bom…
Nós dois fomos até a barraquinha de pão de queijo que tinha ali. Chegando lá, uma atendente simpática nos recebeu.
― Pois não?
― O que você vai pedir, Rafa? ― Eu perguntei.
Ele pegou um cardápio, apontou e disse:
― Pão de queijo com queijo! É simplesmente o melhor!
Olhei o número que se seguia e… OITO E CINQUENTA? SÉRIO?
― Nossa moça! Oito e cinquenta? Mas que tamanho é esse pão de queijo!? ― Perguntei e a atendente começou a rir.
― É grande… ― Rafa disse ficando vermelho. ― Vamos querer dois. Um para cada um.
A moça apertou alguns botões no caixa e disse:
― Bebida?
― Não, obrigado. ― Eu disse.
― Duas cocas. Lata. Por favor. ― Rafa complementou.
― Aff… você paga? ― Eu perguntei.
― Aff… larga de ser pão duro, Lucas!
― Eu? Pão duro?
― Olha, eu pago pra você. Mas, depois, você paga outra coisa pra mim… pode ser?
― Pode, ué… ― eu concordei.
Pegamos nossos pães de queijo… com queijo… e fomos nos sentar em uma das mesinhas que tinham ali.
― Experimenta, para você ver… ― ele sugeriu enquanto nos servia coca.
Peguei o pão de queijo e dei a primeira mordida. Estava quentinho e macio.
― Gostoso. ― Eu disse enquanto terminava de mastigar.
― Não é? ― Ele concordou.
Daí foi a sua vez de morder. Eu era fascinado pelos seus dentinhos branquinhos e delicados. Tentei me lembrar da última vez em que eu os experimentara.
― Tem paraquedas? ― Perguntei.
― No avião? ― Ele perguntou.
― Sim… tipo… se por acaso…
― Acho que não.
― Não!?
― Não sei… na verdade… acho que nunca vi…
― E se…
― Ei… olha… não vai acontecer nada… não sei se ajuda… mas… tenta pensar que… olha… pensa assim… quantos aviões viajam todos os dias?
― Erm… sei lá… muitos…?
― Exato. Muitos. E com que frequência você ouve falar sobre acidentes?
― Mas…
― Com que frequência você ouve falar sobre acidentes? ― Ele repetiu a pergunta.
― Vez ou outra…
― ―
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― Exato! Não tem como! É o transporte mais seguro do mundo! Quais as chances de você estar bem no avião que cai?
― Aff… mas… e se…
― Não vai acontecer nada. Eu prometo!
― Promete? Promete o que? Que o avião não vai cair? Você não pode prometer isso!
― Mas eu prometo mesmo assim. Mais coca?
― Por favor.
* * *
Fomos nos aproximando do portão de embarque. Já estávamos todos juntos novamente. Agora, estávamos na fila para embarcar.
― Qual seu banquinho? ― Rafa perguntou enquanto se encostava em mim novamente.
― Hum… não sei…
Peguei minha passagem e olhei.
― Voo 5210… portão 15…
― Aqui! 28D! ― Ele disse e apontou para o número da minha poltrona.
― Qual é o seu?
― 28C. Você fez check-in logo depois de mim. Ei! Espera aí! Droga! Você ficou com a janelinha!
― Hã? Que janelinha?
― Do avião!
― Sério!? ― Eu disse tentando achar aonde estava escrito janelinha na minha passagem. ― Cadê?
― Você tá na D. A cadeira D é na janela.
― Yes! ― Eu exclamei.
― Troca comigo? ― Ele pediu.
― Mas nem fodendo! ― Eu disse rindo. Sentia que tinha ganhado na loteria.
― Aff… ― ele disse. ― Tudo bem… eu deixo você ir na janelinha… você vai gostar…
― Aham! ― Eu disse feliz.
Gabriel percebeu que estávamos mais felizes que o normal e se aproximou da gente, para saber o que tava rolando.
― O que foi? ― Ele perguntou.
― Olha, Gabriel! Eu tô na janelinha! ― Eu disse mostrando meu bilhete para ele.
― Nossa! Que legal, Lu!
― Você tá aonde? ― Perguntei.
― Tô na 25B. E a Ju na 25A. Na verdade, eu tinha pego a janelinha… mas troquei com ela, sabe?
Fiquei vermelho. Me senti comparado à namorada do Gabriel.
― E o papai e a mamãe? ― Rafa perguntou.
― Então… é sobre isso mesmo que eu queria falar com vocês… ― Gabriel começou.
― O que aconteceu? ― Rafa perguntou desconfiado.
― Pois é… eles estão na 25C e D.
― Olha! Perto de vocês! ― Rafa disse rindo.
― Sim… infelizmente… e é por isso que vocês vão trocar de lugares com a gente.
― O que!? Nem fodendo! ― Rafa disse num tom de deboche.
Agora eu tinha entendido. Gabriel queria privacidade, mas os pais do Rafa estavam bem ao lado dele. E agora ele queria trocar com a gente…
― ―
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― Ah, qual é, maninho! Faz esse favor pro seu irmão! Nunca te pedi nada! ― Gabriel implorou.
― Não… nem… nunca… mano, não tem como! ― Rafa disse.
― Vaiii! Vai, Lucas! ― Ele apelou para mim, visto a resistência do irmão.
Eu não conseguia dizer não para o Gabriel. Era mais forte que eu. Daí eu disse dando de ombros:
― Ah, por mim…
― Não! ― Rafa me interrompeu. ― Tá maluco? Não vou sentar perto do papai e da mamãe!
― Mas vocês nem vão fazer nada! Eu queria ficar com a Jú!
― Como não!? ― Rafa exclamou. ― Nós também vamos ficar!
― No meio do avião? Na frente de todo mundo? ― Gabriel perguntou.
― E o que que tem?
Eiiii! Eu não queria ficar com o Rafa na frente de todo mundo! Eu tinha vergonha. Eu já estava bastante envergonhado por ele estar praticamente se esfregando em mim o tempo todo. Eu não me importava de namorá-lo na escola, muito pelo contrário. Lá, todo mundo sabia. Mas aqui… aqui era diferente. Estávamos na frente de pessoas estranhas… eu ficava me perguntando o que elas poderiam estar pensando… em ver dois meninos… erm… tão próximos assim…
― E o que que tem? Que que tem que vocês são muito pequenos para ficarem se pegando no avião… na frente de todo mundo! ― Gabriel implicou com o irmão.
― Cala boca! ― Rafa xingou. ― Já tenho doze anos!
― Ei! ― Eu intervi. ― Tudo bem, Gabriel… a gente troca. Não tem problema!
― Não! ― Rafa me cortou. ― Troca nada. ― Daí ele olhou para mim. ― Não vamos trocar nem fodendo! Ele que pegou um lugar ruim, ele que se foda!
― Fél… ― eu disse fazendo carinha fofa.
― Não… se quiser, troca você. Eu vou continuar onde bem-estou.
― Aff… tá tudo bem, Lucas… ― Gabriel me consolou. ― Podem ficar. Eu me viro com a Jú. Relaxa.
― Mas…
― Relaxa… tá de boa…
― Tá bom… ― eu concordei. Eu gostava do Gabriel. Eu trocaria de lugar por ele.
Gabriel deu um empurrãozinho malcriado no Rafa.
― Cuzão. ― Rafa o xingou.
Continuamos na fila por mais alguns segundos, até chegar nossa vez. Eu e o Rafa fomos os primeiros da família a embarcar. Os pais do Rafa estavam um pouquinho atrás, pois tinham ido comprar revistas na banca. Entreguei minha passagem para a moça da companhia aérea junto com meu RG. Ela me devolveu o canhotinho do passageiro e eu avancei.
Finalmente eu atravessei a porta de vidro que separava os dois mundos distintos. De um lado, uma sala de espera que, ao mesmo tempo que caótica, era tediosa. Um ambiente agradável… para se perder um tempo. Um ambiente agradável… para se ficar esperando pelo resto da vida.
Do outro lado da porta, um vento agressivo. O barulho das turbinas esquentando. O mundo dos corajosos. O mundo dos corajosos que não têm medo de altura. O mundo dos corajosos que põem a vida em risco para ver o mundo de cima. Para experimentar as nuvens. Para sentir o sabor da água da chuva direto da fonte. Para conhecer o céu. E eu estava feliz que agora eu era um desses. Eu me sentia completamente confiante e destemido.
* * *
― ―
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― Dá pra abrir a porra dos olhos? ― Rafa estava em cima de mim tentando me fazer abrir os olhos.
― Aaaaa! Sai! ― Eu tentei empurrá-lo para o lado. ― Já decolamos? ― Perguntei.
― O pessoal nem acabou de embarcar ainda! ― Ele disse. ― Para de drama!
― Ah… ― eu disse enquanto abria os olhos.
Ainda tinham um monte de pessoas em pé guardando suas bagagens e mais um monte entrando no avião.
― Você quer botar sua mochila aqui em cima? ― Ele perguntou enquanto se levantava do assento.
― Não… acho que vou ficar com ela aqui… ― eu disse. ― Meus fones de ouvido estão aqui.
― Tá… vou guardar a minha aqui em cima.
Ele pegou sua mochila e a colocou no bagageiro, que ficava acima dos nossos assentos. Quando ele ergueu os braços, sua camisa subiu e eu pude contemplar o elástico de sua cueca. Olhei para trás, para ter certeza de que o pessoal não estava fazendo o mesmo. Será que só eu me sentia atraído por aquilo? Era sexy demais.
Ele voltou a se sentar comigo e disse:
― Aí! Deixa eu botar o cinto em você.
Levantei um pouquinho os braços e permiti que ele alcançasse o cinto que estava ao meu lado. Daí ele puxou e o afivelou em mim.
― Prontinho! ― Ele disse.
― Tá me zoando, né? ― Eu disse preocupado.
― O que?
― Isso daqui que é o cinto?
― Sim…
― Isso não vai me proteger porra nenhuma! ― Reclamei.
― Mas é só pra te segurar no banco!
― Pra eu não sair voando enquanto morro?
― Não… claro que não! ― Daí ele ficou em silêncio. ― Tá… é… sim… exatamente pra isso!
― Meu deus… quero descer… ― eu disse começando a ficar nervoso.
― Relaxa… não vai acontecer nada…
― Droga! ― Eu gritei.
― O que foi? ― Ele perguntou.
― Esqueci de ligar pra minha mãe!
― Ué… liga depois…
― Depois de que? Depois que eu morrer?
― Aff… você não vai morrer…
― Rafa… eu preciso falar com ela.
Ele olhou para os lados e disse:
― Acho que você não pode usar celular aqui…
― Por que?
― É que celular causa interferência no avião… se você ligar, aí que o avião vai cair mesmo.
― Não! ― Exclamei procurando qualquer sinal de insinceridade nele. ― Fala sério! ― Implorei.
― É sério!
― ―
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― Rafael! Para! Não tem graça! ― Eu disse sentindo meu coração bater mais rápido.
― É sério!
― Rafael! Para de brincar! ― Implorei.
― É sério! Acha que eu brincaria com uma coisa dessas?
― Acho!
― É sério!
― Vou chorar. ― Eu tentei me fazer de coitado.
― Aff… tá bom… liga logo… era mentira. ― Ele admitiu.
― Aff… sabia! ― Eu disse.
Celular causar interferência em avião… pff… quanta besteira. Até parece que um celularzinho de quinta categoria seria capaz de derrubar um avião. Peguei meu celular e disquei para minha mãe. Botei o celular no ouvido enquanto chamava. O Rafa se aproximou de mim e me deu um beijo na bochecha. Fiquei vermelho. Daí minha mãe atendeu.
― Alô? ― Perguntei.
― Alô? Lucas?
― Oi… mãe… ― eu disse.
Rafa veio me dar outro beijo na bochecha. Eu dei um empurrãozinho nele. Agora não era hora de ele me deixar distraído, mas parece que ele estava se divertindo fazendo isso.
― Oi… mãe… então… já estou no avião…
― Já está no aeroporto?
― Sim… já estou aqui dentro do avião…
― Ah… tá bom então… está frio aí?
Daí o Rafa começou a passar a mão na minha coxa. Senti um pouco de cócegas.
― É… ― eu respondi distraído.
― É o que?
― Oi… eu não entendi o que você falou…
― Tá frio aí?
― Ah… mais ou menos… aqui dentro do avião tá calor…
― Hum… tá bom então, filho… boa viagem…
― É… valeu…
― Juízo…
― Sempre…
― Quando chegar, me liga…
― Ligo sim… pode deixar…
― Então tchau…
― É… erm… mãe…?
― Oi?
― É… e-eu… te amo… tá?
― Lucas… o avião não vai cair nem se você quisesse, meu filho… ― ela respondeu.
O Rafa ouviu e começou a rir. Eu dei outro empurrãozinho nele.
― Tá bom, então… t-tchau… ― eu disse por fim.
― Tchau. Quando chegar, não esquece de ligar pra mãe!
― Tá bom… tchau…
Daí eu desliguei o celular.
― Viu? ― Rafa disse rindo.
― Cala a boca! ― Eu respondi.
― ―
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“Sejam bem-vindos a bordo. Observe o número de seu assento no cartão de embarque. Por medidas de segurança, acomodem as bagagens de mão nos compartimentos acima de seus assentos e, as que não couberem, abaixo da poltrona a sua frente.”
Olhei meu bilhete e conferi se estava sentado no lugar certo mesmo.
“Informamos que, por determinação do Departamento de Aviação Civil ― DAC, é proibida a utilização a bordo de qualquer aparelho eletrônico emissor de energia eletromagnética, principalmente telefones celulares, que deverão permanecer desligados.”
― Viu!? ― Rafa disse. ― Não pode celular!
Nessa hora, confesso que fiquei com medo de ter feito merda.
― E agora? ― Perguntei.
― Agora já foi! ― Ele disse dando de ombros.
“Senhoras e senhores, bom-dia. Meu nome é Cristina Souza e eu sou uma das comissárias deste voo. Em nome do Comandante Marcos Teixeira e da Gol, apresento as boas-vindas a bordo do Boeing voo 5210 com destino à Recife. Tempo estimado de voo de duas horas e quarenta e cinco minutos. Durante a decolagem, o encosto de sua poltrona deve ser mantido na posição vertical e sua mesa fechada e travada. Observem os avisos luminosos de afivelar os cintos.”
“Pedimos a sua atenção para a demonstração dos nossos procedimentos de segurança. Em caso de despressurização, máscaras individuais cairão automaticamente dos painéis acima de seus lugares.”
Olhei para cima, procurando os tais painéis.
“Neste momento, puxe a máscara mais próxima para liberar o oxigênio. Aplique-a sobre o nariz e a boca, ajuste o elástico a volta da cabeça e respire normalmente. Passageiros viajando com crianças ou alguém que necessite de ajuda, lembramos que deverão colocar suas máscaras primeiro, para, em seguida, auxiliá-los.”
― Meu deus! ― Eu disse começando a ficar nervoso.
“Esta aeronave possui seis saídas de emergência, observe a indicação dos comissários e identifiquem a saída mais próxima de seu assento. Os cintos deverão estar afivelados sempre que o sinal de atar cintos estiver aceso ou enquanto permanecerem sentados.”
― Rafa! A gente não devia estar anotando essas coisas?
― Hã? ― Ele me olhou indignado.
― Pega um papel aí! Rápido!
― Que papel, meu fi!?
“Recomendamos a leitura das instruções de segurança que se encontram a frente de seus lugares. Lembramos ainda que os assentos de suas poltronas são flutuantes. A Gol agradece a preferência e desejam a todos uma boa viagem.”
― Porra! Já esqueci tudo! ― Eu disse preocupado. ― Cadê essas instruções de segurança?
“Ladys and gentlemen…”
Aí começaram a passar os avisos em inglês.
― Rafa… que porra estão falando? ― Perguntei desesperado enquanto procurava um bloco de notas na mochila.
― Aff… meu deus, Lu… tenta relaxar… são as mesmas instruções… só que em inglês…
― Ah… por que?
― Porque é muito comum se ter estrangeiros a bordo… eu acho…
― Eita… que chique… ― eu disse.
― Né?
Daí o avião começou a se mover. Imediatamente segurei o pulso do Rafa.
― ―
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― Aaaaa… ― eu disse nervoso. Ouvi as pessoas que estavam atrás da gente rirem.
― Calma… só tá andando…
Olhei para trás e tinha duas senhoras, que disfarçaram quando me viram. Era só o que me faltava… gente velha rindo de mim.
― Calma, tá bom? ― Rafa disse.
― Não me solta. ― Mandei. ― Ouviu?
― Tá bom… não vou te soltar…
Olhei pela janelinha e vi a rua se mover.
― Ah… isso que é andar de avião? ― Eu perguntei tentando disfarçar o medo. ― Nem dá medo!
― É… é só isso… a decolagem é um pouco forte, mas… é legal…
― Um pouco forte quanto? ― Perguntei.
― Um pouco forte assim…
Daí ele botou as mãos nos meus ombros e me deu um chacoalhão. Fiquei com medo.
― Aff… ― eu disse.
O avião andou por mais alguns segundos até parar na pista de decolagem.
― Já chegamos? ― Perguntei rindo.
― Não… ele só parou pra decolar…
“Bom dia, senhoras e senhores. Eu sou o comandante Marcos Teixeira e gostaria de avisar que estamos prontos para a decolagem.”
― Ai meu deus do céu! ― Eu disse. ― É agora!
― Siim! ― Rafa disse empolgado.
Aí nós começamos a andar para frente. Meu coração estava se acelerando tanto quanto o avião. Segurei a mão do Rafa como nunca e deixei a física tomar conta do resto. O avião estava ficando cada vez mais rápido… e cada vez mais rápido…
― Raaaafaaaaa… ― eu disse e fechei os olhos.
― Não! Abre! Você tem que ver!
Senti um impulso forte e, no próximo instante, eu já sabia o que era voar. Eu não sabia como eu sabia, mas eu sabia que não estávamos mais no chão. Uma força me jogava para trás e me colava ao assento.
― Abreee! Olhaaa! ― Rafa insistia. ― Você tá perdendo! Luuuuu!
Eu não estava mais com medo… eu não sabia o que estava sentindo… eu não queria abrir os olhos porque eu… na verdade eu não sabia… eu não sabia por que eu não queria abrir os olhos… eu queria… mas não sabia o que esperar… não sabia o que fazer… acho que o medo de explorar o desconhecido estava me fazendo pensar duas vezes… ou talvez eu só não me lembrasse de como abri-los.
E aquela força imensurável continuava brincando com meu corpo. Agora ela me jogava tanto para trás, quanto para baixo. Eu sentia meu corpo se acelerar junto com o avião.
― Olha! O aeroporto está ficando para trás! ― Rafa disse.
Mas eu ainda estava em um conflito comigo mesmo. Abrir ou não abrir? Eu confesso que eu estava muito curioso. O que será que estava acontecendo ao meu redor? Eu só não conseguia dizer se essa minha curiosidade era maior que meu medo.
― Rafa…? ― Eu o chamei.
― Que?
― Acho que vou abrir…
― Abre logo! ― Ele me encorajou.
Virei minha cabeça para o lado, para a janelinha, e, finalmente, abri meus olhos. Senti a luz do sol das quatro da tarde queimar minhas pupilas. E olhei. Olhei para a imensidão da cidade.
― ―
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Para a imensidão do nosso planeta Terra. Estávamos alto. Não tão alto quanto estaríamos nos próximos segundo, mas… alto. Parecia que eu estava em um daqueles filmes, em que as cidades são filmadas do alto… ou até mesmo em um daqueles jogos de videogames, onde eu posso movimentar a câmera do jeito que eu quiser. As casinhas estavam ridiculamente pequenas e parecia que todo o mundo tinha se transformado em miniatura.
Por alguns segundos, filosofei sobre a altura em que estávamos. Nessa altura, acredito eu, que já dava para morrer… imaginei como seria legal se o avião caísse e se só eu e o Rafa sobrevivêssemos a queda… como seria legal a forma com que todos os nossos problemas desapareceriam… não precisaríamos mais ir à escola… não precisaríamos mais dar satisfações a ninguém. E o quão legal seria aparecer no meu velório e deixar todos surpresos e felizes. Seria morrer e não morrer. Morrer e não parar de pensar. Essa seria a melhor maneira de ficar longe o suficiente de tudo que as pessoas não diziam, mas pensavam. Me imaginei sobrevivendo na selva com o Gatinho. O quão legal seria ter um mundo só para nós dois. O quão legal seria vivermos livres, na natureza. O quão legal seria montarmos uma fogueira e uma barraca ao pôr do sol e nos curtirmos no silêncio da noite. Sozinhos… numa floresta sem formigas… sem insetos… sem pessoas… só nós dois. Deve ter sido assim, para Adão e Eva.
Sei que meu pensamento é egoísta… mas, se eu pudesse apertar um botão para realizá-lo, nem sei se pensaria duas vezes.
Olhei para o Rafa e ele estava me olhando.
― Tá pensando em que? ― Perguntei.
Ele riu timidamente.
― Em nada… ― ele disse e suas bochechas ficaram vermelhas.
― Fala! ― Insisti.
― Tô pensando em como fui burro de deixar você ir na janela! Eu sabia que você ia fechar os olhos!
― Eiii! ― Eu reclamei rindo.
― Tô brincando… ― ele disse timidamente. ― Tô brincando… na verdade, eu tô pensando em você… você não devia fechar esses olhos verdes nunca… não sei se olho para eles ou para a janela…
Eu ri nervosamente. Chegava a ser ridículo o tamanho de sua romanticidade. Me aproximei dele, agarrei a gola da sua camisa e o beijei. Puxei seu corpo para mim e fiz questão de que nossas bocas ficassem alinhadas com o vão entre nossos dois assentos, para que as duas senhoras, que estavam atrás da gente, nos vissem nos beijando.
Foi um beijinho rápido, mas muito gostoso. Eu estava completamente apaixonado por este garoto… e, a cada dia, como se fosse possível, eu ficava mais. E fazia questão de que todo mundo soubesse disso.
― Mas é sério… ― ele disse separando sua boca da minha. ― Depois a gente faz isso… acho que você deveria aproveitar a vista enquanto pode… vale a pena… de verdade…
Eu fiz que sim com a cabeça e voltei a olhar pela janelinha do avião. Ainda de mãos dadas, estávamos subindo e subindo. Tentei parar de pensar que, se caíssemos, morreríamos, e tentei admirar a beleza da cidade de São Paulo que estava ficando para trás.
Tínhamos saído de Ribeirão Preto às oito da manhã. Fomos de carro até São Paulo, mais especificamente até o aeroporto de Guarulhos. Chegamos lá por volta das duas da tarde. E agora, cá estávamos nós, quatro da tarde, deixando São Paulo… nos atirando na imensidão do céu. Estávamos a caminho de Recife, onde pegaríamos um ônibus até Porto de Galinhas e, depois, alugaríamos um carro para irmos para o hotel.
E, por minutos, esse avião voou. Voou como se não houvesse amanhã. Eu estava encantado… não… eu estava apaixonado. Eu nunca tinha sentido essa sensação antes… era uma
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mistura de felicidade e de satisfação. Eu estava satisfeito… satisfeito com a vida que estava levando.
Será que um dia tudo isso acabaria? Quer dizer… um dia tudo acaba, mas… fiquei imaginando como seria crescer. Descobri que isso me dava medo… quer dizer, descobri não… me lembrei… porque disso eu já sabia. Eu não conseguia me ver amadurecendo e tendo uma família e um emprego. Eu nem sabia em que gostaria de trabalhar…
Doze anos. Pensei um pouquinho na minha idade. No meu número. Eu sentia que tinha vivido tão pouco… principalmente por ter uma grande nuvem opaca no lugar das minhas primeiras memórias. Eu não me lembrava de quase nada de quando era um bebê. Me lembrava bem pouco também dos meus primeiros anos… tinham passado tão rápido. Eu estava com doze anos e não tinha feito porra nenhuma da vida. Se considerarmos que um ser humano vive em torno de setenta anos… eu já tinha vivido um sétimo da minha vida… e tinha passado tão rápido… e isso me deixava com medo… me deixava assustado. Eu sabia que a melhor fase da minha vida estava se passando diante dos meus olhos… e eu não podia fazer nada a respeito. Maldito tempo que não pode ser parado. Maldito tempo que faz o que quiser quando bem entender.
Porto de Galinhas… cara… olha onde eu estava agora… dentro de um avião… com um outro menino… com uma outra pessoa… a caminho de uma cidade desconhecida… sozinho… sem meu pai e sem minha mãe… sem as pessoas que estiveram comigo durante toda a minha vida… o que é que eu tinha feito para parar aqui?
A vida é engraçada… olha o tanto de coisas que tiveram que acontecer para que este momento existisse… olha o tanto de pessoas envolvidas… não estou falando só de mim e do Rafa não… para que este momento existisse, eu tive que nascer… meus pais tiveram que se conhecer… meus avós tiveram que se conhecer… e assim vai… o avião teve que ser inventado… as pessoas que inventaram o avião tiveram que nascer… e as milhares de pessoas que trabalharam na construção também… engenheiros… operários… líderes… até a folha de papel em que esse avião foi projetado teve que existir… daí envolvemos as fábricas de papéis e todos seus funcionários… tudo… todo o mundo teve que existir e ser do jeito que foi para que esse momento existisse… para que essa perfeição caótica acontecesse…
Pois é… mas este era apenas eu… viajando fundo nos meus próprios pensamentos.
― Você tá me zoando que tem comida! ― Eu disse quando uma das comissárias anunciou o serviço de bordo.
― Tem sim! ― Rafa confirmou.
Já fazia aproximadamente uma hora e meia que estávamos voando. Eu já tinha me acostumado com a sensação de estar totalmente à deriva no céu. É claro que o Rafa quase perdeu um braço quando enfrentamos a primeira turbulência, mas… não acho que ele se importe de ser esmagado por mim… uma vez que foi dele a brilhante ideia de me colocar em um pedaço de metal voador. Mas, no geral, eu já tinha me acostumado com a sensação. Tive alguns problemas com meu ouvido, por causa da mudança de pressão, mas agora já estava bem.
― Mas a gente tem que pagar? ― Perguntei.
― Não… claro que não… você já pagou quando comprou a passagem…
― Quando vocês compraram… você quis dizer…
― É… sim…
― Hum… legal…
Ficamos esperamos a comissária passar de assento em assento oferecendo comida até que chegasse a nossa vez.
― Aceitam alguma bebida? ― Ela perguntou pra gente.
― Água. Sem gelo. ― Rafa pediu educadamente.
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― Ah… eu vou de coca… ― pedi.
A comissária nos serviu e depois perguntou.
― Aceitam bolinho?
― Por favor. ― Rafa pediu.
― Aham! ― Eu disse.
― Morango ou chocolate? ― Ela perguntou.
― Chocolate. ― Rafa respondeu.
― Os dois. ― Eu pedi e o Rafa me olhou torto.
Ela nos entregou os bolinhos e seguiu com o serviço pelo resto do avião.
― Dois? Sério? Seu gordo!
― Que foi!? ― Perguntei. ― Sai fora! Se quisesse dois, pedisse também!
― Eu não! ― Ele reclamou.
Daí ele pegou um de seus fones de ouvido e me entregou.
― Vamos ouvir música? ― Ele sugeriu.
Botei o fone no ouvido esquerdo e me aproximei um pouco dele.
― O que quer ouvir? ― Ele perguntou.
― Ah… não sei… o que você quiser…
― Pode ser Justin? ― Ele perguntou.
― O que você quiser… ― eu disse. ― Não sabia que você gostava de Justin…
― Gosto. Ele é gato. ― Ele disse e deu o play na música no Spotify.
― Nossa… sério? ― Perguntei.
― Sim… por que? Você não acha?
― Quando ele era menor, sim… mas, agora, não… ele tá feio…
― Sério? Ele tá muito mais bonito! Quando ele era pirralho, ele era irritante… metidinho e arrogante…
― Claro que não! Agora que ele tá assim!
― Não acho… ele tá todo saradinho e gostoso…
― Aff… ― eu reclamei.
― O que? Ficou com ciúmes? ― Ele perguntou me zoando.
― Fiquei! ― Xinguei.
― Awnt! Fica não… ele é muita areia para o meu caminhãozinho…
― Tá dizendo que eu não sou?
― Não! Não foi isso que eu quis dizer!
― Desculpa se eu não sou saradinho e gostoso! E se nem sei cantar! E se nem tenho um bilhão de fãs e de dólares!
― Aff… para de drama!
― Rum… tô bravo agora!
― Isso… fica com ciúmes dele mesmo… ― ele disse enquanto abria o seu bolinho.
Abri o meu também. Abri o de chocolate primeiro, igual o dele.
― Sabe quem gosta dele? ― Eu disse.
― Quem? ― Ele perguntou.
― A Giovanna. Ela é fãzona dele. ― Eu disse enquanto mordia meu bolinho.
― Jura?
― Aham… eu conheço as músicas dele por causa dela. ― Eu disse de boca cheia.
― Sei… e o que que virou ela?
― Ah… conversamos bastante aquele dia… lembra que eu te falei?
― Uhum… ― ele disse mastigando seu bolinho.
― Acho que ela tá mais de boa, agora… só tá puta com o Arthur.
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― Sei… e ele?
― Ah… tá de boa também… disse que já tinha se conformado com o fato de que nunca beijaria uma garota…
― Meu deus… hahaha… que garoto pessimista…
― Né?
― Que que será que ele deve estar fazendo agora? Aposto que ele deve estar se acabando na punheta.
― Rafael! ― Eu o repreendi. ― Deixa o Arthur em paz! Hahaha!
― Vai dizer que não!
― É… é bem provável…
― Né?
Terminamos de comer nossos bolinhos e a comissária passou recolhendo o lixinho. Daí o Rafa levantou o apoio de braço que separava nossos assentos e veio se encostar em mim. Ele apoiou a cabeça em mim, deixando seu queixo no meu ombro e me abraçou enquanto olhava pela janela.
Eram seis horas da tarde. O sol estava começando a se pôr e o laranja já tomava conta do céu. Estávamos acima das nuvens. Não dava para ver o que estava abaixo de nós… e nem dava para saber o quão alto estávamos… mas estávamos alto… era fantástico poder ver o sol acima das nuvens… era fantástico poder contemplar um outro laranja… um outro amarelo… como era possível existir tamanha beleza escondida atrás das nuvens? Será que era assim que Deus via o mundo? Por que tanta beleza só podia ser vista por poucos? Queria que todas as pessoas do mundo pudessem contemplar este pôr do sol pelo menos uma vez na vida. Era fantasticamente maravilhoso.
Ficamos juntos. Abraços. Contemplando o pôr do sol acima das nuvens. Eu estava, antes de tudo, satisfeito. Satisfeito com a vida. Satisfeito comigo mesmo. Satisfeito com tudo. O cheiro dele fazia minha cabeça revirar. O calor de seu corpo me confortava e me deixava seguro. Era bom demais para ser verdade!
Depois de mais alguns minutos assim, ouvimos a comissária falar:
“Dentro de instantes, estaremos pousando no Aeroporto Internacional de Recife. Mantenham os encostos da poltrona na posição vertical e suas mesas fechadas e travadas. Observem os avisos luminosos de atar cintos. A partir deste momento, é proibida a utilização de qualquer equipamento eletrônico.”
Desligamos nossos celulares e continuamos apreciando a vista abraçados. Depois de alguns minutos o avião iniciou o processo de pouso. Fiquei com um pouco de medo, porque estava sendo a parte mais violenta do trajeto. Continuamos descendo e descendo.
Quando cruzamos as nuvens e voltamos à Terra, fiquei completamente encantado com o que vi. Pela primeira vez na vida, pude contemplar a beleza abundante e magnífica daquilo que chamavam de oceano.
― Uau. ― Foi a única coisa que consegui dizer.
Era simplesmente lindo. Estonteante. Eu estava sem palavras. Poder contemplar algo infinito era realmente um dos melhores presentes que eu já ganhara na vida. E eu estava feliz… feliz ao lado da pessoa que eu mais amava nesse mundo. Estávamos juntos. Contemplando, de cima, o vasto oceano azul e a, então banhada por laranja, Cidade do Sol.